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"A Igreja do Diabo": conto machadiano repercute debate sobre intolerância religiosa

  • Foto do escritor: Deborah Dietrich
    Deborah Dietrich
  • 18 de jun. de 2021
  • 5 min de leitura


Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) foi um jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, classificado por muitos o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Nascido no Rio de Janeiro, foi o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras, ocupando por mais de dez anos o cargo de presidente. Considerado o introdutor do Realismo no Brasil, sua obra é constituída de dez romances, duzentos contos, dez peças teatrais, cinco coletâneas de poemas e sonetos, e mais de seiscentas crônicas. As produções machadianas foram de fundamental importância para as escolas literárias brasileiras do século XIX e do século XX, proporcionando atualmente um grande interesse acadêmico e público.

Publicado em 1883 na Gazeta de Notícias, o conto “A igreja do Diabo” foi o primeiro texto do livro “Histórias sem data”, lançado posteriormente em 1884. Em 2019, todos os contos de Machado de Assis foram reunidos no box literário “Todos os contos - vol. I e II”, por meio da organização de Ana Lucia Machado de Oliveira.

Quase 140 anos separam o conto machadiano da realidade atual e, infelizmente, a intolerância religiosa ainda é um grande obstáculo no meio de convívio. De uma forma irônica, o conto "A igreja do Diabo" apresenta uma crítica ao pensamento fundamentalista. Dividido em quatro capítulos, a narrativa desenvolve uma perspectiva antagonista às normas religiosas e fortifica a indissociável dualidade humana, composta pelo sagrado e pelo profano.

Em “De uma ideia mirífica”, primeiro capítulo do conto, o Diabo percebe que, entre uma pluralidade de vertentes ‘do bem’, seus princípios não possuíam uma reunião literária, um local de adoração e nem uma representação definitiva. Machado enfatiza o sentimento de instabilidade que o personagem sentia, reforçado em “[...] sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos” (p. 467).

Reconhecendo a ausência de uma representatividade ‘digna’, o Diabo tem a ‘ideia mirífica’ de fundar a sua própria igreja. Antes de concretizar seus planos, ele decide contar a Deus sobre as suas intenções, iniciando o segundo capítulo “Entre Deus e o Diabo”. No decorrer do diálogo, o Diabo apresenta os seus planos por meio de provocações ao ‘Reino de Deus’ ao dizer que “não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto” (p. 468). Todavia, Deus não impede suas ambições, apesar de denominar o Diabo como um “velho retórico”, demonstrando que há uma ausência de originalidade em seu discurso.


"Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez".

Após o retorno do Diabo à Terra, o teor irônico do conto se enfatiza a partir da leitura do nome do terceiro capítulo: “A boa nova aos homens”. Ao utilizar uma frase presente no Evangelho cristão sobre a notícia de que o mundo seria salvo por Jesus Cristo, o conto desenvolve sarcasticamente a ‘chegada’ do Diabo como, agora, fundador e líder de uma religião.

A partir de sua apresentação aos homens, o Diabo aponta as normas e as crenças de sua igreja, aclamando a soberba, a luxúria, a preguiça, e se opondo ao amor ao próximo, à fidelidade e à solidariedade humana. Utilizando extensas descrições, Machado desenvolve um roteiro completo de genialidade: enquanto o Diabo descreve o caráter ímpar de sua igreja, acaba seguindo a mesma estrutura cultural e ideológica das religiões já existentes, se opondo somente por seu teor maligno e anti humanitarista.

O último capítulo “Franjas e franjas” faz menção à fala do Diabo para Deus, em que, durante o diálogo sobre a sua igreja, previa que as virtudes divinas, consideradas como “[...] comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão” (p. 468), iriam ser destruídas após a sua igreja, fazendo isso ao “[...] puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura” (p.468). Assim, a previsão do Diabo aconteceu: sua representação era aclamada e reconhecida em todo o mundo, enaltecendo os valores ‘malignos’.

Após ler as descrições de um mundo religiosamente ‘diabólico’, o leitor se depara com uma controvérsia: o Diabo, ao observar o comportamento de seus seguidores, percebe que todos apresentam características que desvirtuam seus mandamentos. Ele nota que as pessoas, ao dizerem que vão praticar o egoísmo, o ódio e a inveja, por exemplo, acabam fazendo, às escondidas, ações de caridade, encontros em outros templos e demonstrações de empatia.


"Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente, mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; [...] os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros".

Indignado com o cenário vivenciado, o Diabo retorna ao céu para contar sobre a situação inesperada. Então, Deus questiona sobre o que ele realmente esperava, já que essa realidade é simplesmente “[...] a eterna contradição humana” (p. 473).

Encerrando o conto de uma forma reflexiva, irônica e crítica, Machado de Assis discorre de uma história que aponta, de uma forma ilustrativa, as falhas do fundamentalismo e do estabelecimento de verdades absolutas. A composição dualista do ser humano é exaltada por meio de argumentações sarcásticas, proporcionando uma resolução existencialista.

— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

O texto possibilita uma reflexão sobre o universalismo religioso, considerando que a essência humana abrange as dimensões sagradas e profanas. De caráter descritivo, um ponto que pode dificultar a leitura ocorre durante o diálogo entre Deus e o Diabo, já que flertam com características positivistas, sendo necessário uma análise mais profunda que uma única leitura para derivar de toda a narrativa.

“A igreja do Diabo” é uma leitura de importância ímpar na literatura nacional e mundial, com vistas à particularidade da escrita machadiana. Com um olhar reflexivo, é possível notar a contradição da intolerância religiosa, ao evidenciar que não é possível existir uma religião perfeita e nem seguir uma crença sem interferir restrições, principalmente as que vão contra a natureza humana.

Desde alunos do ensino médio escolar à acadêmicos da área de Letras, é possível recomendar o conto para todas as pessoas interessadas em ingressar nas obras de Machado de Assis, já que é uma leitura agradável e divertida. Além disso, o conto também pode ser utilizado por estudantes de Antropologia e Teologia, com o intuito de analisar a reflexão religiosa e existencial que compõe a narrativa.

Para ler o conto, clique aqui

O conto disponibilizado no link pertence ao Portal Domínio Público, em parceria com a Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro (USP)
BIBLIOGRAFIA: ASSIS, Machado de. A igreja do Diabo. In: OLIVEIRA, Ana Lucia Machado de. Todos os contos - volume I. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2019. p. 467-473.




 
 
 

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