As relações do luto na animação “Dois irmãos: Uma Jornada Fantástica”
- Letícia Anacleto
- 15 de abr. de 2021
- 4 min de leitura

Mesmo com a premissa infantil proposta pelo formato de animação, mais uma vez a Pixar surpreende com a profundidade que é capaz de abordar temas importantes dentro de histórias simples, causando reflexão em seu público. Lançado em 5 de março de 2020, “Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica” cativa também os adultos ao retratar o luto por meio de um universo onde elfos, unicórnios, sereias e centauros são reais.
Apesar de todas as criaturas fantasiosas, a magia está extinta no mundo em que o filme se passa, sendo considerada um conto de fadas. A animação gira em torno da jornada que os irmãos Ian e Barley vão fazer em busca de um poder antigo capaz de trazer de volta seu pai, que morreu quando ambos eram mais jovens.
Logo no início, Ian é presenteado com um antigo cajado de bruxo e descobre, ao conseguir trazer de volta a metade de baixo do corpo de seu pai, que tem o dom da magia. Mesmo sem o apoio e crença de ninguém, os jovens saem na van do irmão mais velho em uma grande busca para conseguirem restaurar o corpo de seu pai, dessa vez, por inteiro.

O luto e a memória
Ian é o irmão mais apegado à ideia de trazer o pai de volta, nem que seja por apenas um dia. Esse sentimento é reforçado na cena em que o jovem elfo escuta uma gravação antiga e responde ao áudio de seu pai como se estivessem em uma conversa. O apego por um objeto ressalta a memória, que está estritamente relacionada ao afetivo. Assim, algo que tem um maior impacto emocional é mais fácil de ser lembrado.
A psicóloga, mestre em psicologia, pós-graduada em cuidados paliativos e formada em tanatologia, Isadora Mattos, conta que as lembranças de momentos banais, como os trejeitos, frases e, até mesmo, os comportamentos irritantes da pessoa, são o que o enlutado tem de mais valioso. “As emoções acontecem em oscilação, o importante é não evitar ou fugir da realidade dessa perda”, explica.
Os sentimentos afetivos pela pessoa que morreu, como amor, gratidão e admiração, vão refletir na vida do enlutado no formato de memórias. A lembrança, então, pode ser reafirmada tanto por meio de pensamentos como por objetos marcantes que recordam aquele que partiu. Esse é o caso de Ian, que se mostra muito apegado às fotos, aos momentos vividos e à gravação de áudio do pai.
A "jornada" do luto
O caminho do luto não é linear, pois não existe um ponto de partida e de chegada demarcados. Não existe um caminho mais fácil ou uma dor menos doída, assim como uma montanha-russa, o trajeto pode dar muitas voltas. Assim, a “jornada fantástica” dos irmãos elfos, que passam por diversas aventuras no decorrer do filme, funciona como uma metáfora que representa os caminhos sinuosos do luto.
Isadora conta que “no luto é importante viver cada emoção e, ao mesmo tempo, reorganizar a vida também de forma prática”. Nesse contexto, a ambivalência, uma mistura de sentimentos, é o que vai moldar as emoções e construir a história de cada pessoa a partir das experiências vividas com o luto.
Também é importante ficar atento, pois a necessidade de buscar ajuda por meio da terapia pode surgir. “Quando a reorganização não se mostra presente, é importante avaliar a necessidade da ajuda profissional”, explica Isadora. A psicóloga afirma que o espaço da psicoterapia, seja presencial ou online, é um lugar que possibilita a reorganização da “bagunça” de sentimentos.
O luto pode ser superado?
“Não gosto de usar o verbo ‘superar’ para o processo de um luto, porque ele não é um obstáculo a ser saltado. É uma experiência dolorosa, mas é para ser vivido” - Frase da psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto (LELu), da PUC-SP.
Apesar do redemoinho de sentimentos proporcionados pelo luto, Isadora conta que ele não deve ser entendido como algo a ser superado: “Ele é entendido como processo e não uma etapa ou algo a ser saltado”, aponta. Portanto, o processo de sentimentos de Ian durante o filme deve ser entendido como uma reorganização que levou à evolução pessoal do jovem.
Por conta da montanha-russa de emoções, as pessoas tendem a pensar que um enlutado deve tentar evitar os sentimentos, para conseguir passar pela situação difícil. Esse pensamento de “superação” é equivocado, porque, de acordo com a psicóloga, “as emoções acontecem em oscilação e o importante é não evitar ou fugir da realidade dessa perda, tudo pode ter um caráter para melhor ajuste nesse caminho”.
Fica claro, ao final de “Dois irmãos: Uma Jornada Fantástica”, que a relação fraternal entre as personagens foi fortalecida e o irmão mais novo foi capaz de reorganizar suas emoções. Ao conseguir o poder capaz de trazer de volta o restante do corpo, mesmo que apenas por alguns minutos, Ian resolve perder a oportunidade de olhar para o rosto de seu pai para combater um monstro que ameaçava a todos.
O elfo mostra o amadurecimento de seus sentimentos ao decidir perder a oportunidade, que lutou durante todo o longa-metragem para conseguir, por um bem maior. Ao finalmente conseguir fazer a organização em sua cabeça em relação ao luto pelo pai, o garoto alcança resultados positivos, melhorando as suas relações pessoais com amigos, família e consigo próprio.
“Nas missões, o caminho fácil nunca é o adequado” - Ian fala para Barley ao final do filme.
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