O processo de perda e amadurecimento de Peter Parker em No Way Home
- Julia Portilho
- 3 de jan. de 2022
- 7 min de leitura

[Contém spoilers]
Considerado o filme mais aguardado de 2021, Spider Man: No Way Home foi lançado no Brasil dia 16 de dezembro e já se consagrou como uma das melhores e mais memoráveis produções do universo dos super-heróis. O longa dirigido por Jon Watts recorreu à nostalgia e apresentou uma narrativa onde o herói finalmente volta às suas origens e inicia uma jornada de amadurecimento.
A princípio é preciso deixar claro que o roteiro não é perfeito e tem sim suas falhas, contudo, isto é pauta para um outro momento. Agora, o destaque vai para a construção gradativa da nova fase de Peter Parker após a repentina exposição de sua identidade como Homem Aranha para todo o mundo. Os desafios e dificuldades enfrentadas por todo adolescente em seu último ano no colégio ganham uma nova proporção quando se é um herói.
Em uma entrevista exclusiva para o portal Discussing Film, Erik Sommers, um dos roteiristas do filme, falou sobre como abordaram o amadurecimento de Peter ao ter que lidar com as consequências de suas ações em Far From Home (2019):
“Sabíamos que tudo o que teríamos que resolver neste filme - incluindo se formar no colégio, seguir na faculdade etc - seria afetado pelo fato de que ele não era mais anônimo. Então foi apenas uma questão de sentar e realmente pensar como seria a história. Bem cedo, sabíamos que entrar na faculdade era um grande marco e um grande acontecimento que poderíamos realmente agarrar e mostrar que, você sabe, ele tinha planos.”
O amadurecimento de Peter começa aos poucos, mas principalmente ao mostrar o lado mais humano do personagem e que condiz com sua idade. Desde a tensão e anseio pela espera da carta de aceitação da tão sonhada faculdade até lidar com a frustração e decepção de ser rejeitado, Parker mostra a imaturidade condizente com a mentalidade de um jovem ao recorrer a magia para tentar reverter o prejuízo que causou a si mesmo, mas sobretudo, a seus amigos ao ter sua identidade revelada.
Neste aspecto é necessário evidenciar que a justificativa para suas ações impulsivas (ao recorrer ao Doutor Estranho para fazer as pessoas esquecerem de que é o spidey) revelam sua profunda e mais pura preocupação com o futuro de Ned e MJ. Tudo se tornou insuportável ao atingir aqueles que ele ama, e o amor e devoção é o que movimenta e motiva Parker, independente de qual versão.
Apesar disso, o crescimento emocional e que realmente provoca um choque de realidade na vida do personagem é a perda de sua tia May. O que muito se discutiu e provocou brigas entre os fãs na internet, é a negligência do MCU em retratar a importância e o impacto da perda do tio Ben na construção de Peter como herói e também como adulto. A famosa frase “com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”, grande marco da essência do personagem e das outras franquias, finalmente foi dita. A surpresa se reservou por ter sido May a responsável por inserir a reflexão no Peter de Tom Holland.
As versões do spidey do multiverso ajudam Peter a entender que existem duas pessoas que entendem perfeitamente o quão desamparado, revoltado e perdido ele está no momento. O primeiro aranha (Tobey Maguire) conforta o jovem e tenta mostrá-lo que talvez a morte de sua tia não tenha sido em vão, enquanto Andrew Garfield narra sua jornada de luto e raiva ao perder sua namorada durante uma luta. A cena serve quase como um edificador para os personagens que percebem que, apesar de todas as dificuldades e dor pelas quais passaram, eles podem sim superar.
Com uma cena extremamente emocionante e delicada, May mostra o verdadeiro significado de bondade e empatia ao continuar querendo o bem daqueles que aparentemente não tinham salvação, mesmo para o Duende Verde, que lhe causou sua repentina e inesperada morte. O acontecimento é a chave de virada da jornada e da narrativa de Peter dentro do universo cinematográfico da Marvel. Tudo o que acontece depois é consequência deste fato. É a perda da inocência e o início de uma nova fase.

A resolução da trama de No Way Home envolve o esquecimento por completo de todos da existência de Peter Parker. Com isso, o personagem precisa aprender a viver sozinho num mundo onde supostamente ninguém conhece sua identidade como Homem Aranha, nem mesmo seus amigos, Happy ou os Vingadores. Peter é obrigado a crescer e se tornar adulto, arrumar um modo de se sustentar e uma nova casa. A perda do amparo constante de outros personagens desde seu ingresso em Civil War (2016) é quase um alento para os fãs do spidey, porque representa uma verdadeira volta às origens do personagem.
Se antes dos presentes acontecimentos Peter esteve sob a guarda de mentores, como Tony Stark e Strange, agora ele precisa reaprender a ser um herói completo sozinho e sem a ajuda de artefatos tecnológicos das Indústrias Stark. Assim como as versões de Tobey e Andrew, Tom também deve trilhar um caminho baseado apenas na sua inteligência (muito bem lembrada na cena de luta com Strange usando seus conhecimentos em matemática), mostrando a simplicidade que tornou o spidey um herói de fácil admiração.

É um recomeço: sem família, amigos, faculdade, casa ou emprego. A cena em que Peter faz seu novo traje com a máquina de costura de sua tia é extremamente emocionante e empolgante. O herói se diferencia dos demais por mostrar um lado mais humano dos super-heróis, sem poderes extravagantes, com problemas reais para pagar o aluguel e sendo apenas o “amigo da vizinhança”. A identificação com a vida real do público talvez seja um dos porquês da popularidade e sucesso do personagem desde sua criação nos anos 60.
A humanização dos “vilões”
Outro grande acerto do filme é ter inovado ao fugir do clássico punir ou tratar os “vilões” simplesmente como pessoas malvadas por natureza e sem salvação. Ao propor ir contra seus destinos em suas realidades (em sua maioria, a morte ou a cadeia), o personagem de Tom Holland mostra a empatia (e essência) de Peter Parker ao querer dar uma nova chance aos “inimigos” e acreditar que eles poderiam sim ser “salvos”.
Indo contra todos os riscos e as probabilidades, ele parte em uma missão em busca de curar e ajudar cada antagonista para que tivessem uma nova chance ao retornarem em seus respectivos mundos. Ao fazer isso, a lente batida e usual, onde os vilões são apenas vilões, é substituída por uma onde eles também são seres humanos que erraram e sofreram. O filme abre margem para mostrar que eles tiveram seus arrependimentos e motivações para fazer o que fizeram em suas histórias e que os colocaram na linha de frente contra os Aranhas.
Um dos exemplos é o Doutor Octopus (Alfred Molina). Em seu filme original com Tobey Maguire, o personagem se mostrou um cientista brilhante, bondoso e preocupado com as pessoas ao seu redor. Ele se torna quase um mentor para o Peter de Homem Aranha 2 (2004), antes de sua experiência com os tentáculos mecânicos fracassar. Ao ter o chip que liga a estrutura a seu sistema nervoso comprometido, o cientista desenvolve uma outra consciência que o controla e o faz agir sem remorso e focado apenas em um objetivo, custe o que custar.
O novo longa do spidey nos mostra que no fundo ele nunca quis machucar ninguém. Ao ter o chip "consertado", Octopus volta a ser a pessoa gentil e solícita que vimos em 2004, tendo consciência da situação e até ajudando as três versões do Aranha na luta final contra todos os arqui-inimigos.
Contudo, é Willem Dafoe que rouba a cena como Norman Osborn, ou o Duende Verde. Ao ter uma importância vital para o desenrolar da trama e também para o desenvolvimento emocional de Peter (com a morte de sua tia), o “vilão” continua mostrando a dualidade que envolve seu personagem. Durante o filme é possível perceber que Norman é uma boa pessoa quando não está sendo controlada por seu alter ego. Ele procura May Parker e tem uma conversa sincera sobre suas preocupações e anseios. Seu encontro com Peter é totalmente divergente de sua primeira aparição caótica na ponte.

O roteiro deixa claro que Norman é controlado pelo Duende e que nem tinha consciência da consequência dos atos que ocasionaram sua própria morte. No ato final, Peter tem a chance de colocar em prática as palavras de May e poupar a vida de Osborn, com o apoio de suas outras versões do multiverso. A primeira versão do Aranha (Tobey) impede que o Peter de Tom Holland cometa o mesmo erro que cometeu na franquia original, ao matar o homem que pensou ter tirado a vida de seu tio.
O desfecho mostra os heróis salvando Osborn ao lhe aplicar uma cura para voltar a si. Mesmo após uma luta baseada em muita raiva e ódio, ele decide não aderir a vingança contra o homem que matou sua tia. Assim, com a consciência dos outros Aranhas a seu lado, Peter demonstra o grau mais alto de maturidade até então. Sua perda foi indescritível, mas não justificava matar uma pessoa que não tinha total controle de suas ações.
Peter age com uma maturidade que difere de sua versão no início do filme, abrindo mão de toda sua vida pelo bem-estar daqueles que ama. Ele prefere ser apagado da lembrança de todos do que continuar provocando o caos na vida de seus amigos (e agora, também no multiverso) pela revelação de sua identidade.
Toda essa situação nos faz refletir sobre como os “criminosos” da vida real "merecem" ser tratados. Que tipo de sentença deveria ser atribuída a cada um? Seus crimes são perdoáveis? Eles merecem ser salvos? Ou ainda, deveriam morrer por seus crimes? São perguntas difíceis e sem respostas prontas. O certo até o momento é que Peter Parker acredita que sim, eles merecem uma segunda chance.
No Way Home foi o primeiro filme a ultrapassar US$ 1 bilhão em bilheteria desde o início da pandemia. Além disso, também foi o responsável por atrair o público de volta aos cinemas, o que demonstra todo o apreço das pessoas pelo personagem. O longa tem um roteiro com falhas, mas merece ser lembrado como um ícone popular e na mitologia do spidey.
De forma geral, o mais novo filme do Aranha conseguiu construir uma narrativa de volta às origens, exaltando as razões pelas quais o personagem é tão querido. O processo de perda e amadurecimento de Peter é um dos grandes marcos do filme de 2021, merecendo total atenção e destaque no futuro ainda incerto do teioso dentro do MCU.
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