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"O Gambito da Rainha": a realidade misógina por trás da ficção

  • Foto do escritor: Deborah Dietrich
    Deborah Dietrich
  • 25 de mar. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 25 de mar. de 2021


O Gambito da Rainha (2020)

Dirigida por Scott Frank, “O Gambito da Rainha” se tornou a minissérie mais assistida da história da Netflix em tempo recorde. Vencedora de dois Globos de Ouro nas categorias “Melhor Minissérie” e “Melhor Atriz” (Anya Taylor-Joy), a narrativa conta a história de Beth Harmon, uma garota prodígio que, futuramente, se torna campeã mundial na década de 60. Porém, um dos fatores que afasta a minissérie da realidade é que, em oposição ao apoio que a personagem recebe de seus adversários homens, o cenário enxadrístico atual é predominantemente marcado por comportamentos machistas.

“Agora, você abandona”. Essa foi a lição que Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) recebeu após perder a dama em sua segunda partida de xadrez com o Sr. Shaibel (William Camp). O conselho do zelador partiu do pressuposto de que, quando um jogador perde essa peça logo no início da partida, as chances de conseguir uma vitória diminuem drasticamente.

Sendo a dama a única peça notoriamente ‘feminina’ no xadrez, apesar de possuir o maior valor relativo no jogo, a realidade das mulheres no ambiente enxadrístico é limitada a níveis hostis. Assédios, ofensas e tentativas de invalidação são alguns dos tipos mais recorrentes de violência que as jogadoras enfrentam durante as competições contra os homens.

A enxadrista Ellen Bail, 21, conta que a sua trajetória no xadrez teve início aos seis anos. Seu ingresso na infância foi motivado por sua mãe, que se interessou pelo desenvolvimento de habilidades cognitivas que o jogo promove, como a memória, o raciocínio e a concentração.

Quando morava em São Bento do Sul/SC, seu professor da escola, que coincidentemente também era o treinador da equipe municipal de xadrez, convidou a jogadora para representar o município em competições da cidade, do estado e até do Brasil. Aos sete anos, ela participou do seu primeiro campeonato brasileiro, despertando o seu interesse pela competição.

No decorrer de sua trajetória, Ellen foi campeã catarinense por categorias, vice-campeã brasileira escolar, campeã por equipes e recordista de medalhas em jogos, como a Olimpíada Estudantil Catarinense (OLESC) e os Joguinhos Abertos de Santa Catarina. Aos 17 anos, quando se mudou para Curitiba, foi Campeã Paranaense Feminina Adulta, Campeã dos Jogos Abertos do Paraná, medalhista nos Jogos Universitários Brasileiros e Campeã Paranaense e Brasileira Sub 20. Além disso, ela comenta que se orgulha de ter representado o Brasil em dois campeonatos mundiais e em um campeonato sulamericano.


Misoginia no xadrez


Com relação à ocorrência de comportamentos insultuosos no xadrez, a jogadora conta que os comentários depreciativos em relação à categoria feminina são relativamente comuns. “Já ouvi muita gente desmerecendo meus títulos por serem na categoria feminina e também sei de diversas situações em que os próprios técnicos não tratavam suas atletas com seriedade, como se 'não valesse a pena' treinar mulheres. Felizmente, essa última situação nunca aconteceu comigo por parte dos meus técnicos”, comenta.

A mentalidade misógina no xadrez não é novidade. Bobby Fischer, considerado como um dos melhores jogadores da história, afirmou que “provavelmente, elas (mulheres) não têm a mesma inteligência”. Garry Kasparov, campeão mundial, também afirmou que o xadrez “não é para as mulheres”.

Judit Pólgar é a única mulher a ter sido candidata ao título do Campeonato Mundial de Xadrez. Foi considerada a pessoa mais jovem a conquistar o título de Grande Mestre Internacional, batendo o recorde de Bobby Fischer. Ironicamente, durante um torneio em 2002, a enxadrista derrotou Garry Kasparov e foi a primeira mulher na história do xadrez a vencer um campeão mundial.

Judit Pólgar jogando contra Garry Kasparov, instantes antes de se tornar a primeira mulher a ganhar de um campeão mundial em 2002

Sobre o comentário de Kasparov, Ellen argumenta que, apesar de considerá-lo como um dos melhores jogadores da história, os comentários polêmicos sobre a capacidade cognitiva e competitiva das mulheres são recorrentes, em que os jogadores “destilam opiniões pessoais como se fossem especialistas no assunto”. “Ser um excelente jogador de xadrez não te dá propriedade para falar sobre as diferenças biológicas, neurológicas e sociais entre homens e mulheres. Eu também não me sinto a ‘dona da verdade’ simplesmente por ser mulher, mas acho desonesto dizer que esse é o fato de as mulheres não se destacarem tanto no xadrez, sendo que existem muitos outros motivos pelos quais a participação feminina é menor em qualquer esporte”, conclui.


Mulheres como minoria


Infelizmente, a narrativa de Beth Harmon sendo uma jogadora mundialmente reconhecida permanece na ficção e não se aproxima da realidade: a presença de mulheres no xadrez ainda é mínima, não existindo ainda nenhuma campeã mundial. Dos 1.600 grandes mestres internacionais, apenas 37 são mulheres, compondo apenas 2% dos jogadores.

Sobre a minissérie “O gambito da rainha”, a jogadora elogia a presença de uma protagonista em uma produção audiovisual sobre xadrez, justificando que não é um tema abordado com frequência. Mesmo com a crítica positiva, Ellen reforça que, infelizmente, a chance da narrativa se reproduzir na vida real está longe de acontecer. “Só temos uma jogadora no top 100 absoluto do xadrez (e ela é a número 85). Isso é um triste fato da representação feminina no xadrez desde sempre, até os dias de hoje. A única mulher que conseguiu chegar no top 10 absoluto, nunca foi campeã mundial competindo com homens, apenas no mundial feminino”, conclui.

Uma das alternativas para a inclusão de mulheres é a categorização feminina em torneios e campeonatos. Ellen afirma que, sem os campeonatos femininos, a evasão das jogadoras seria ainda maior. Ela destaca a importância da presença de incentivos, como premiações e títulos, já que, como existe uma proporção significativamente menor de mulheres em campeonatos mistos, a disputa pelos títulos desses torneios geralmente se concentra entre os homens.

Outro aspecto reforçado pela enxadrista é que, sem os campeonatos femininos, haveria uma grande dificuldade para as mulheres se sustentarem financeiramente com o xadrez. Por outro lado, Ellen complementa que a participação das mulheres não deve ser restrita em categorias femininas, sendo importante a presença de enxadristas também nos campeonatos absolutos.


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