Stranger Things: Vecna e a analogia à depressão
- Letícia Anacleto
- 16 de jul. de 2022
- 7 min de leitura

Após três anos de espera, os fãs de Stranger Things finalmente puderam assistir a primeira parte da quarta temporada. Lançada em 27 de maio, a série chegou ainda mais sombria e com um novo vilão para atormentar a mente das nossas personagens favoritas de Hawkins.
Nesta nova trama, o público é introduzido a uma história mais complexa e ainda mais obscura que a das temporadas anteriores. Desta vez, os grupos estão divididos e enfrentando situações diferentes, mas que, de certa forma, estão ligadas aos eventos passados e atuais do Mundo Invertido.
Cada personagem enfrenta seus demônios pessoais por meio do Vecna, monstro baseado no RPG Dungeons & Dragons, jogado por Mike, Will, Dustin, Lucas e Eddie. A criatura entra na cabeça das pessoas, fazendo-as reviverem traumas por meio de alucinações que conflitam com o mundo real.
Saúde mental
Para além da trama fantasiosa, Stranger Things abre portas para uma debate sobre a depressão, um vilão tão tenebroso quanto o da série. Na ficção, Vecna é um mal que influencia as pessoas a jamais superarem eventos traumatizantes do passado, fazendo-as esquecer todos os momentos bons. A situação causa muita angústia e ansiedade nas vítimas, que têm, até mesmo, sintomas físicos, como dores de cabeça, náuseas e pesadelos.
De acordo com Regiane Quinteiro, coordenadora e docente do curso de psicologia da PUC Minas Poços de Caldas, eventos traumáticos podem afetar a saúde mental de uma pessoa no futuro. “Tudo depende do tipo de evento ocorrido, quando ocorreu, como é a personalidade da pessoa”, explica.
Regiane aponta que essas lembranças podem facilitar o desenvolvimento de transtornos como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, fobia (social ou mais específicas), dentre vários outros. A psicóloga enfatiza que cada caso é específico e envolve muitas possibilidades: “podem ter fatos da infância ou adolescência mal resolvidos, dificuldade em lidar com frustrações, não saber lidar com os sentimentos, não ser ouvido pela família”.
No tempo atual da série, tudo começa com a líder de torcida Chrissy, uma das mais populares da escola. Apesar de aparentar ter uma vida perfeita, a garota sofria os efeitos de uma relação abusiva que tinha com a mãe. A menina começa a ter alucinações de perseguição, muito predominantes em casos de esquizofrenia, segundo Regiane, que explica: “A alucinação pode ser visual e auditiva e envolveria respostas verbais de uma pessoa frente a estímulos não observáveis aos olhos de quem está ao redor. O delírio envolve falsas afirmações, embora incontestáveis para aquele que fala, cujo conteúdo está relacionado com os da história de vida da pessoa”.
A segunda vítima é Fred, um repórter do jornal da escola que se envolveu em um acidente de carro, no qual ele não socorreu uma vítima que precisava de ajuda. Em seguida, o novo alvo é Patrick, um jogador de basquete da Hawkins High, que apesar da pose de atleta, passou por alguma experiência traumática que não fica muito clara. Vecna vê nas fragilidades dos jovens uma ótima oportunidade para praticar seus jogos mentais e fazer mais vítimas.
Ao analisar os “sintomas” das personagens, é possível fazer uma relação de toda essa angústia causada por Vecna com a depressão. Este transtorno mental é caracterizado pela presença de humor triste, vazio ou irritável e, de acordo com Regiane, também pode causar perda ou ganho de peso, sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva, insônia, capacidade diminuída de pensar ou de se concentrar, dentre vários outros.
O transtorno, que afeta mais de 300 milhões de pessoas no mundo todo, deve ser levado à sério, pois, no pior dos casos, pode levar ao suicídio. A última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), publicada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que os números são altos também no Brasil: 10,2% da população com 18 anos ou mais foi diagnosticada com depressão. A porcentagem representa 16,3 milhões de pessoas. Os dados são ainda mais alarmantes se considerados em escala mundial e na situação de Covid-19 que o mundo enfrentou. Um levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que a pandemia desencadeou o aumento de 25% nos casos de ansiedade e depressão.
“Amigos não mentem”
Não mentem, mas omitem. É comum algumas pessoas que estão passando por momentos difíceis não contarem a situação para ninguém, seja por medo de incomodar ou, até mesmo, de acharem que é besteira. Não é atoa que a maioria das vítimas de Vecna passando por todo aquele sofrimento não contaram para seus amigos e familiares.
Logo no início da temporada nova da série essa situação fica clara por meio de Chrissy. A menina passa o primeiro episódio inteiro sendo assombrada e perseguida pelo vilão do Mundo Invertido, mas não compartilha a situação com nenhum de seus amigos, nem mesmo com seu namorado. Quem vê a líder de torcida andando pelos corredores da escola com um sorriso disfarçado, nem imagina o pesadelo que ela está vivenciando.
Se engana quem pensa que todos que estão passando por problemas vão demonstrar, e Stranger Things demonstra isso muito bem. Até mesmo quem aparenta estar feliz ou tem grandes realizações de vida pode estar, internamente, enfrentando um transtorno mental como a depressão.
Regiane aponta que, primeiramente, é preciso diferenciar a tristeza comum de algo mais sério. “Sentimentos de tristeza no cotidiano também fazem parte das interações das pessoas com o mundo ao seu redor e é importante ela identificar se consegue sair desse momento de tristeza e retomar o seu dia a dia, seguindo com sua vida e percebendo outras emoções positivas em novas situações”, explica.
A professora conta que, apesar de não falarem com todas as letras, as pessoas com depressão dão sinais. Os indícios podem ser observados no dia a dia, como, por exemplo, se a pessoa está se afastando de seus compromissos diários, tem falta de energia para realizar tarefas e está constantemente triste.
Para que o depressivo receba o devido tratamento, muitas vezes é preciso que, primeiramente, ele seja simplesmente notado pelas pessoas próximas. A psicóloga dá exemplos de situações que podem servir de alerta: “a família e amigos próximos poderão perceber as mudanças comportamentais que se estendem ao longo dos dias, a intensidade dos sentimentos de tristeza e a ausência nos encontros e compromissos”.
Voltando à série, Max é o único caso que consegue escapar da morte trágica, justamente por receber apoio de seus amigos. Ao descobrirem que Vecna tinha a menina como mais um de seus alvos, Lucas, Dustin, Steve, Nancy e Robin não medem esforços para ajudá-la.
A menina acredita estar com suas horas de vida contadas e distribui cartas de despedida para seus familiares e amigos. Mesmo com a sentença de morte, Max insiste em agir como se estivesse tranquila e esconde seus verdadeiros sentimentos, principalmente de Lucas, que reforça estar sempre à disposição para apoiá-la.
Lucas: Max, você sabe que pode falar comigo, né?
Max: é, eu sei.
Lucas: Então por que você não para de me afastar? Eu não preciso de carta, eu não quero uma carta. Só fala comigo, com seus amigos. A gente tá aqui. Eu tô aqui.

Diálogo entre Lucas e Max no quarto episódio da temporada 4.
Como fugir do “Vecna”
Os amigos de Max também foram muito perspicazes ao ajudarem a salvá-la em uma das cenas mais emocionantes de toda a série. No episódio quatro, quando a garota está possuída, o grupo descobre que a música pode trazê-la de volta. Dentro daquele mundo todo vermelho, com medo, presa e prestes a ser morta, Max ouve “Running Up That Hill” e vê uma saída.
A canção de Kate Bush, lançada em 1985, foi o que possibilitou a uma das personagens favoritas de grande parte dos fãs a criar forças para resistir ao Vecna. A cena emocionante da menina correndo desesperadamente pela sua sobrevivência mostra como a música tem papel importante.
Desde a Grécia Antiga, a ideia de que as canções afetam o bem-estar e saúde das pessoas já era abordada por Platão. No livro “As Leis” o filósofo destaca que os cantos podem ajudar a acalmar os transtornos emocionais, pois a música é capaz de atingir profundamente a alma de um cidadão através do subconsciente.
“Ao longo dos anos, os antigos encontraram uma boa receita para a educação: ginástica para o corpo e música para a alma” - Platão
Com isso, Regiane destaca que buscar realizar certas atividades - como ouvir sua música preferida -, além de inserir pequenos hobbies e momentos de relaxamento no dia a dia é indicado para cuidar da saúde mental de todas as pessoas. Essas ocupações contribuem para a melhor circulação de neurotransmissores no cérebro, como a serotonina e endorfina, responsáveis pelo prazer, conforto e bem-estar.
Entretanto, ainda é importante levar em consideração as emoções desagradáveis, como a tristeza, raiva ansiedade e frustração. A professora reforça que “ é preciso olhar, entender, nomear o sentimento, falar sobre ele para buscar novas formas de lidar com as tensões da vida”.
Terapia é música para os ouvidos
Apesar das atividades contribuírem para o tratamento de alguns transtornos mentais, quem tem o diagnóstico de depressão pode não conseguir se engajar nesses recursos. Por isso, “a depender da história de vida da pessoa, é preciso, primeiramente, buscar um tratamento psicológico”, enfatiza Regiane. Muitas das vezes a terapia também pode ser acompanhada do tratamento psiquiátrico, para que seja introduzido o uso de medicação apropriada.
O acompanhamento com psicólogo é de extrema importância para que o paciente entenda o que está acontecendo e busque autoconhecimento. A partir disso, o tratamento da depressão em psicoterapia pode ser feito de diferentes formas, a depender da linha teórica seguida pelo profissional.
A professora explica sobre a Análise do Comportamento como um dos métodos que pode ser seguido. O processo se inicia com o terapeuta conversando com a pessoa, a fim de conhecer sua história de vida. O intuito é fazer o paciente “entender que o sofrimento está ocorrendo, quando ele começou, quais situações provocam os sintomas depressivos […]”.
Ao identificar esses elementos, o profissional consegue, aos poucos, estabelecer objetivos terapêuticos para promover as mudanças comportamentais desejadas. É importante ressaltar que o tratamento deve ser conduzido conforme as especificidades de cada um, sendo diferente para cada pessoa.
Regiane defende que o acompanhamento é indispensável para uma recuperação efetiva. Para isso, reforça que o transtorno mental deve ser levado a sério: “a depressão não é frescura, como pode ser facilmente ouvido em nossa sociedade. A ajuda essencial é buscar profissionais para realizarem tratamento psicoterapêutico e medicamentoso, a depender de cada caso”.
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