O protagonismo de pautas sociais em "Anne With An E"
- Julia Portilho
- 27 de mai. de 2021
- 6 min de leitura

A série “Anne With An E”, baseada nos livros de L. M. Montgomery, conta a história de Anne, uma menina órfã que, após um erro no sistema do orfanato, é adotada por engano por um casal de irmãos que buscava ajuda para o trabalho na fazenda. Ambientada na zona rural do Canadá do século XIX, o enredo explora diversos temas em evidência na época e que continuam relevantes, como o preconceito e o machismo estrutural incrustado na sociedade.
O preconceito na tela
A série demonstra uma sensibilidade ímpar ao tratar assuntos como a homoafetividade em diferentes fases da vida de modo natural e cuidadoso. Cole é colega de classe de Anne e desde cedo sofreu bullying por ser diferente. No entanto, sua vida muda após acompanhar Anne e Diana a uma festa na cidade e conhecer Josephine, tia de Diana. A idosa é a representação de progresso e liberdade, tendo passado a vida inteira ao lado de sua companheira sem medo do julgamento da sociedade. O fato era oportuno somente porque tinha condições financeiras avantajadas, já que na época a temática era considerada um tabu.
A descoberta faz com que a aproximação entre os dois personagens se torne algo único. Cole ganha força e ressignifica sua vida ao fugir e ser acolhido por Josephine. O jovem se espelha na mulher e se liberta das pressões e amarras do preconceito que sofreu. Hoje, a mentalidade das pessoas tem evoluído e, a passos lentos, caminhamos em direção a um mundo mais tolerante. A legalização do casamento gay e a criminalização da homofobia são algumas das conquistas que os deixariam com orgulho.
"É engraçado como as pessoas são tão rápidas para apontar diferenças quando há tantas maneiras em que somos semelhantes." - Anne
O racismo é abordado de maneira simples, mas tão real que provoca desconforto no telespectador. Em uma cena, Sebastian, ou Bash, leva Gilbert para conhecer a mãe que ainda trabalhava na casa de seus ex-senhores em seu país natal. Apesar de, na teoria, ser liberta, a senhora ainda se vê como uma escrava e com obrigação de cuidar da família branca a qual sempre serviu. A condição de submissão é tamanha que ela, tendo priorizado os filhos da patroa ao seu próprio durante toda a vida, se nega a ir embora com o filho e deixar os patrões. A mágoa e o sentimento de abandono de Bash são escancarados por meio da atuação de Dalmar Abuzeid.
Em busca de um novo começo e deixando para trás o trabalho braçal em um navio, ele parte então para Avonlea junto a Gilbert, agora como sócios na fazenda da família do garoto. O preconceito se faz presente logo quando Bash tenta embarcar na estação de trem e é impedido por outro negro. A situação é quase surreal, embora muito comum: o modo como um indivíduo se rebaixa e aceita seu lugar como inferior aos demais.
A chegada na cidade apenas traz mais desconfianças quanto ao caráter e integridade de Bash, afinal, a vista de todos, um branco dificilmente seria amigo de um negro. Frente a tanto menosprezo, ele é atraído para o gueto, local precário e com pouca infraestrutura onde os negros viviam quase reclusos. Mais de um século separam os acontecimentos entre ficção e realidade, contudo pouco mudou. O preconceito e a desigualdade social continuam segregando, sobretudo, as minorias, como os negros.
Anne: ícone feminista e ativista social
A construção da personagem de Anne, por sua vez, está diretamente relacionada a muitas tramas da narrativa. Com um histórico marcado por abusos e traumas de seu tempo no orfanato, a menina chega a fazenda de Green Gables insegura e desesperada por uma família e um lar. Como forma de fugir da realidade, ela encontra na literatura e na imaginação um modo de sobreviver.
Sua presença movimenta e, de certa forma, muda a cidade e seus habitantes. Para os irmãos Cuthberts, Anne leva amor e alegria, sendo responsável por uní-los e dar um sentido a vida pacata a qual estavam acostumados. Seu ingresso na escola é complicado e, por muito tempo, foi julgada por sua personalidade extremamente expressiva e por sua aparência. Ao longo das temporadas, ela vai se conhecendo e construindo sua identidade. Anne ganha confiança e maturidade, se mostrando uma figura empoderada disposta a lutar por igualdade e justiça.
Conhecida por suas perguntas incessantes a respeito de tudo e de todos, Anne está ciente das mazelas sociais e sempre questiona os valores da comunidade ao seu redor. A personagem pode ser considerada uma feminista à frente do seu tempo; logo no primeiro episódio faz um discurso convicto de que seria tão capaz quanto um garoto de fazer o trabalho pesado de uma fazenda.
O machismo e o patriarcado característicos do século XIX influenciam diretamente na vida das garotas de Avonlea. Prissy é uma das alunas mais velhas e, em certo ponto da narrativa, se vê dividida entre seguir seu sonho de ir para a faculdade e se casar com alguém que ama (no caso, o pretendente era seu próprio professor). Com muita coragem e determinação, a garota quebra o padrão de dedicar sua vida exclusivamente a satisfazer o marido e cuidar dos filhos ao fugir de seu casamento e escolher sua liberdade e seus estudos.

O aspecto interessante é que Prissy é irmã mais velha de Josie, uma das amigas de Anne, e que, após uma conversa entre todas sobre o assunto, a garota ganhou uma nova perspectiva sobre suas escolhas. Na mesma linha, Diana é outra que teve toda a vida planejada pelos pais. Seu futuro é ingressar em uma escola de etiqueta em Paris para aprender a ser uma boa esposa, indo contra sua vontade pessoal de continuar estudando como seus amigos.
Anne é uma mulher moderna e não entende o porquê de tanta disparidade entre os sexos. A dúvida é válida já que, mesmo com algumas conquistas como o direito ao voto e o de trabalhar, as mulheres ainda são minoria representada na sociedade atual. As lutas do seriado se entrelaçam e de ícone feminista Anne vai direto para a liderança de um protesto com seus colegas de classe contra a censura e a favor da liberdade de imprensa do jornal da escola.
A prensa foi um presente para os estudantes e responsável por dar voz e visibilidade aos jovens. Em um de seus artigos, Anne, motivada pela história de sua amiga Josie ter sido destratada pelo namorado, expõe a questão do machismo e do modo como as garotas são tratadas pela sociedade. Após a publicação ela é atacada, expulsa do jornal e reprimida, inclusive, pelas próprias mulheres. A prefeitura passa, então, a “sugerir” quais assuntos seriam permitidos para serem abordados no periódico.
O episódio gerou revolta e incitou o movimento dos alunos. Eles invadem uma reunião do conselho da prefeitura, composto em sua maioria de homens e apenas uma mulher, porém silenciada por suas figuras, com panos tampando as bocas e uma faixa escrito “liberdade de expressão é um direito humano”. Membros da cidade entram no local no momento exato em que um dos anciões do conselho tenta tomar o cartaz e é fotografado tentando calar a voz dos jovens.

“Diga-me e eu esquecerei. Ensina-me e eu lembrarei. Envolva-me e eu aprenderei. Ser diferente não é ruim, só não é ser igual.” - Anne
A denúncia na série espelha a realidade ao passo em que diversos protestos encabeçados por estudantes tiveram força e destaque na sociedade, principalmente quando se trata de lutar contra a censura e a favor de um sistema educacional de qualidade. No Brasil, por exemplo, vale citar o fenômeno ocorrido em 2015, referente à ocupação de escolas públicas paulistas por estudantes contra a reestruturação da educação estadual. O documentário “Lute como uma menina” (2016) retrata a liderança feminina do movimento, servindo de paralelo com a narrativa de Anne e seus amigos em busca de direitos básicos.
O cancelamento da série no final de 2019 foi justificado sob o pretexto financeiro de que a audiência e o retorno não eram satisfatórios para sua continuidade. Contudo, Anne With An E está na lista das séries mais assistidas da história da Netflix, o que torna o argumento inconsistente. A movimentação do público em prol de sua renovação já dura mais de um ano e conta com mais de 1,5 milhão de assinaturas em uma petição online no site “Change.org”. Tamanho engajamento reflete, sobretudo, a satisfação e vontade das pessoas de acompanharem histórias verdadeiras e socialmente relevantes. Em retrospectiva, Anne cumpre o que promete sendo "a heroína de sua própria história".
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