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O protagonismo feminino no universo masculino de The Boys

  • Foto do escritor: Julia Portilho
    Julia Portilho
  • 27 de mar. de 2021
  • 7 min de leitura

Stormfront, Starlight e Queen Maeve em cena da série

A ironia se reserva apenas para o título. Você deve se perguntar: há espaço para o protagonismo feminino em uma série com o nome de, em tradução, “os garotos”? A resposta é sim. O fato inegável é a força das protagonistas e coadjuvantes na sátira sobre super heróis da Amazon Prime. Seja indo de Starlight (Erin Moriarty), uma “mocinha” que foge à regra da passividade, até Madelyn Stillwell (Elizabeth Shue), a “vilã” que administra a empresa fundadora do Seven, ambas fogem dos arquétipos limitadores da indústria cinematográfica.

Quanto a seu enredo, The Boys é uma adaptação dos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson e retrata um universo onde os super poderosos são “comercializados” como um produto pela corporação da Vought Internacional. Sua equipe de heróis, o Seven (uma clara analogia à Liga da Justiça), é composto pelos ídolos do país e usados para todo e qualquer tipo de coisa, indo do clássico prender os bandidos até estrelarem seus próprios filmes e comerciais. O grande diferencial da história é o caráter corrupto e atitudes arrogantes desses seres especiais, afinal, aqui os “supes” não são tão mocinhos como vendido pela mídia.

E é dessa vontade de expor os queridinhos da América que surge o grupo The Boys. Composto por vigilantes “normais”, como Hughie Campbell (Jack Quaid), eles possuem treinamento e conhecimento o suficiente para se arriscarem nessa missão quase suicida. Cada membro foi afetado diretamente por alguma ação do Seven e, juntos, buscam acabar com a supremacia dos supes na sociedade.

A série, em sua primeira temporada, conta com quatro nomes femininos de destaque: Starlight, Queen Maeve (Dominique Melligot), Kimiko (Karen Fukuhara) e Madelyn. Antes de apresentá-las como indivíduos é necessário frisar a importância de cada uma no desenrolar das narrativas, independente do grau de aparição nos episódios, todas têm presença marcante e fundamental em certo ponto da história.

Um dos acertos da produção é dar voz e vez às mulheres para que elas sejam mais do que meros adereços e objetos de desejo dos homens. O enredo permite que as atrizes explorem o passado e as motivações de suas personagens, já que cada uma possui sua particularidade e uma personalidade bem demarcada.

Essa abordagem se torna extremamente relevante devido ao alcance de público do seriado. Mais importante que realizar é se certificar de que as pessoas terão acesso ao seu conteúdo. Mesmo se tratando de um tipo de produto muitas vezes subestimado, The Boys é responsável por abordar pautas como o feminismo, a violência contra a mulher, o machismo e o patriarcado de forma coerente e verossímil. Além disso, se difere de tantas outras produções do gênero por apostar na humanização de seus personagens, a ponto de o público conseguir visualizar tais figuras no mundo real.


O que torna cada uma única


Na realidade da série, a grande aspiração da maioria das pessoas com habilidades é fazer parte do seleto grupo dos sete da Vought. Starlight teve uma criação cristã e se preparou desde criança para o dia que teria a chance de se juntar aos seus grandes exemplos. A ingenuidade e fé cega que sempre depositou nos salvadores da pátria termina ao ser abusada por The Deep (Chace Crawford) logo em seu primeiro dia no trabalho.

A partir daí toda a visão de mundo de Annie, sua verdadeira identidade, começa a ser desconstruída. Seu alinhamento moral é posto à prova e a “mocinha” passa a ter atitudes cada vez mais questionáveis visto o ambiente tóxico e corrompido no qual é inserida. Apesar disso, o senso de justiça continua sendo seu norte e principal guia em meio a tanta corrupção. Em um ato de extrema coragem, ela expõe seu estuprador para toda a mídia, decretando o fim patético do “herói”.

É perceptível a luta interna de Annie quanto a seguir as regras e a fazer o que é necessário. Ela poderia ser encarada quase como a voz racional e coerente das telespectadoras. Mesmo com todos os seus erros e defeitos, é quase impossível não se identificar e torcer por seu sucesso. Em certo ponto da narrativa, ela se torna uma espécie de agente dupla e passa a conspirar junto aos Boys em busca da exposição da Vought e de seus próprios colegas de equipe.

Sem o auxílio de Starlight, os vigilantes não teriam alcançado grande parte de seus objetivos. Para salvá-los, a jovem enfrentou até mesmo Homelander, o líder megalomaníaco dos super poderosos que foi capaz de deixar um avião cheio de passageiros cair por um mero capricho, provando, assim, sua lealdade à causa. Logo, é possível notar a expressiva força e poder de Starlight, se reafirmando um episódio após o outro como uma das protagonistas do tv show.

Além disso, a independência da personagem é o que a impede de se reduzir a apenas um interesse romântico de Hughie. Outro ponto que chama a atenção é o evidente desconforto da personagem quanto a hipersexualização a qual foi submetida ao se juntar ao Seven, o questionamento é claro: como um uniforme minúsculo contribui para ajudar a salvar as pessoas e a lutar contra o crime? O empoderamento feminino é tratado como uma construção contínua e pode ser percebido em pequenos atos, como a reflexão sobre os trajes.

Em entrevista ao Digital Spy, Erin Moriarty comenta sobre a mensagem que desejam transmitir através das pautas femininas levantadas pela série:

“Estamos tentando fazer uma declaração de que empoderamento não é igual a perfeição... empoderamento é igual a falhas, erros cometidos, tudo o que é usado para nos fortalecermos como mulheres ao invés de nos derrotar”

Pensada como uma paródia da Mulher Maravilha, Queen Maeve faz par com Starlight como as mulheres no time do Seven. A veterana também foi desacreditada depois de seu ingresso na equipe da Vought. Seu envolvimento com Homelander e as pressões da corporação a fizeram esconder quem era de verdade. Por anos, ela suportou todas as atitudes maníacas de seu colega e reprimiu o amor por sua antiga namorada por medo de julgamento e retaliação.

A personagem não tem tanto destaque quanto Starlight porém é perceptível a questão da sororidade em sua personalidade. Mesmo nunca tendo sido próxima a sua colega, quando sua vida estava ameaçada ela defendeu a jovem do líder dos Seven, enfrentando todo o temor que sentia por sua figura. Nesse aspecto, é possível correlacionar com a nossa realidade, quando duas mulheres se identificam e se protegem por solidariedade e empatia.


Kimiko e os Boys em frente a um painel do Seven

Integrando o time nada convencional de “mocinhas” imperfeitas, Kimiko é a única integrante feminina do grupo dos vigilantes. Ao contrário de seus colegas, ela é uma supe que foi traficada de seu país e submetida a experimentos clandestinos que lhe renderam seus poderes. Ela é resgatada em meio a uma das missões dos Boys e, desde então, usa de sua incrível resistência, força física e capacidade de regeneração para tentar destruir a Vought e todos os responsáveis em busca de vingança contra seus raptores.

A personagem destoa dos demais por ser a mais forte entre os Boys. É ela quem os protege, desvinculando da ideia de que mulheres são frágeis e devem ser defendidas pelos homens. Ademais, ela é a prova de que ninguém é só uma coisa: por vezes violenta e meio sádica, Kimiko também pode ser doce e gentil. O aspecto interessante é ver sua interação com os outros tendo em vista que é muda. Foi revelado, por meio do perfil oficial da série no Twitter, que sua intérprete desenvolveu, junto a um especialista, uma linguagem de sinais particular para ser usada em cena.

Fechando o time da primeira temporada, Madelyn foi vice-presidente da Vought e, por muito tempo, a única capaz de controlar minimamente Homelander, o que por si só já demonstra seu poder. Contudo, a maior prova de sua capacidade está justamente na sua falta de poderes. Sem nada além da sua inteligência e competência, a executiva conseguiu estar à frente de uma das maiores empresas globais e tratar os membros do Seven como marionetes.


Adição ao elenco e a "causa"

A estreia da segunda temporada em 2020 conferiu uma magnitude superior às mulheres dentro da história com a chegada de Stormfront (Aya Cash), adaptada para a série como uma personagem feminina, diferente das HQs. A nova integrante do Seven começou como uma figura dúbia e uma ameaça ao monopólio e papel de estrela de Homelander. A evidente indiferença quanto ao líder do grupo demonstra o tamanho de sua coragem e o desejo de tomar o lugar do “herói”.

A contratação de Stormfront fez parte de uma estratégia de publicidade da Vought para atrair e agradar o público. A personagem chega a debochar em uma de suas cenas sobre os interesses por trás de seu ingresso à equipe e o falso feminismo. Ela distorce os princípios do empoderamento feminino e o usa como ferramenta para ganhar visibilidade e simpatia das pessoas.

Essa tática revela o caráter controverso e corrupto de Stormfront e os executivos que representa. Em uma entrevista para o site Vulture, Aya comentou sobre esse tipo de “representatividade” falsa potencializada pelas redes sociais e promovida na série:

“Isso é uma coisa perigosa, mas também é o perigo que está em nosso mundo agora: essas pessoas que estão vomitando ódio, mas estão envoltas nesse tipo de coisa fofa, inteligente, quase punk”

Erik Kripke, idealizador da série para a Amazon, revelou que a intenção era que “a intolerância tivesse um rosto atraente antes de você descobrir o que há por trás”. E é dessa forma que a personagem garante o apoio popular na série e rouba a cena com a revelação de seu passado como uma supremacista branca e fascista. Assumindo a identidade de Liberty no período da Segunda Guerra Mundial, ela foi responsável pela morte de milhares de pessoas que iam contra seus valores.

O espaço dado para o desenvolvimento da vilã e sua relação com os demais personagens garantiu um dos momentos mais marcantes de toda a série. No último episódio é feita uma alusão à cena de Vingadores: Ultimato, quando as heroínas se reúnem em meio a batalha final na tentativa de representar o “empoderamento feminino”. A ideia foi bastante criticada por sua execução superficial na ocasião, por forçar uma união que nunca foi desenvolvimento ao longo dos filmes da franquia, se tornando um ato ridicularizado por muitos fãs.

The Boys decidiu corrigir os erros da Marvel Studios e apresentar a construção das personagens ao longo de todas as duas temporadas. Então quando Starlight, Queen Maeve e Kimiko se juntaram no último episódio para lutar contra Stormfront o acontecimento pareceu coerente e natural. Além de render uma cena de luta com muita violência entre mulheres sem que houvesse a sua sexualização ou fetichização de seus corpos, o momento serviu para reafirmar as personagens como as integrantes mais fortes e poderosas do lado dos Boys. Tanto que os vigilantes reconheceram sua impotência diante de tal situação e apenas entregaram todos os holofotes para o trio.

O final da segunda temporada serviu para consolidar as mulheres como parte fundamental e essencial do tv show. A Amazon Prime segue com o mérito de apostar e dar visibilidade para pautas relevantes e, sobretudo, para a representatividade feminina em uma série de forte adesão do público. A produção garante uma narrativa real e impactante, dando palco para que as atrizes levem para o streaming seu protagonismo.


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