Os efeitos do tempo e do Alzheimer em “The Father”
- Julia Portilho
- 23 de abr. de 2021
- 5 min de leitura

The Father (2020) é uma das grandes apostas na temporada de premiações de Hollywood, tendo sido indicado a seis categorias no Oscar, incluindo a de melhor filme. O longa foi dirigido e co-escrito por Florian Zeller, em uma adaptação de sua peça de teatro de 2012. Os ganhadores da estatueta mais importante do cinema, Anthony Hopkins e Olivia Colman, incorporam Anthony e Anne, pai e filha que precisam lidar com os desdobramentos da perda de memória progressiva do senhor de 81 anos.
Apesar de o diagnóstico não ser explicitado em nenhuma momento do filme, os sintomas nos levam a acreditar que Anthony sofre de uma doença neurodegenerativa mais conhecida como mal de Alzheimer. Até o momento, ela não tem cura, o que significa que a condição do paciente avança com o passar do tempo, com um grau de comprometimento cada vez maior.
A questão da memória é apenas um dos sintomas causados por este tipo de demência. A capacidade de julgamento, raciocínio e aprendizagem também são comprometidas. Além disso, a confusão torna-se uma característica comum, assim como a mudança de personalidade, dificuldades com a linguagem e o comportamento inapropriado. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde, estima-se que existam 35,6 milhões de pessoas com a doença no mundo, sendo que o número tende a dobrar até 2030 e triplicar até 2050.
O filme
“Eu não preciso dela. Eu não preciso de ninguém", uma das falas iniciais de Anthony, resume bem como ele não tem noção de sua condição e como se sente em relação aos efeitos da doença. Com um histórico conturbado em relação a suas cuidadoras, o senhor recusa-se a ser ajudado por justificar que está bem e pode cuidar de si mesmo. No entanto, é claro que já não consegue mais realizar tarefas simples do dia a dia, como lembrar onde guarda seu relógio de pulso. A repetição constante o leva sempre a desconfiar de que está sendo enganado ou roubado.
A situação quase insustentável recai sobre Anne, que tenta conciliar a vida pessoal com as necessidades do pai causadas por sua condição mental. É visível o esforço da filha em tentar prestar toda atenção e cuidado ao pai, tendo, inclusive, o levado para morar consigo em seu apartamento, a fim de facilitar a logística enquanto não encontrava ajuda extra. Uma das questões do filme é justamente o sentimento da mulher de que pode dar conta de tudo, ignorando a sugestão de transferir o pai para uma casa de repouso.
O grande diferencial de The Father é como emerge o espectador na história ao apresentar os acontecimentos sob o ponto de vista do protagonista. Ao narrar falas e acontecimentos, que nem sempre são apresentados na íntegra, na ordem ou condizendo com a realidade aparente, a narrativa é desfalcada como a própria memória de Anthony. A todo momento você questiona o que está acontecendo e o porquê de tudo parecer não fazer sentido, é como estar na pele do protagonista e ver o mundo à sua forma.
É quase impossível não se emocionar e sentir a impotência frente a doença de Anthony que afeta, não só ele, mas sua família e aqueles que se relacionam com ela. É como uma grande teia onde um movimento surte efeito em todos ao seu redor. A apreensão de que o mesmo aconteça com um ente querido sensibiliza profundamente o espectador. E até mesmo o sentimento de identificação, por já ter passado pela mesma situação ou conhecer alguém que sofre com as consequências dessa doença tão injusta e brutal.
Das telas para a vida real

De vivências como as retratadas em The Father surgem histórias como a da especialista em Neurologia Cognitiva pela UFMG, Caíssa Andrade. Desde criança a neurologista tinha o desejo de se tornar médica para cuidar de sua avó, a quem foi sempre muito apegada. Pouco antes de entrar na universidade, a senhora foi diagnosticada com Alzheimer, o que motivou Caíssa a se especializar na área e dedicar anos de sua carreira ao estudo e a ajudar seus pacientes na luta contra a doença.
Na falta de um exame que consiga prever se alguém será ou não afetado pela doença no futuro, a neurologista acredita que a melhor forma de se preparar é através do conhecimento. Quanto ao tratamento, além do cuidado especializado, é fundamental conciliar acompanhamentos auxiliares à rotina do paciente, como um psicólogo, um terapeuta ocupacional e um fonoaudiólogo.
A abordagem deve ter início o mais precoce possível para retardar o avanço do Alzheimer. Para Caíssa, é indispensável “conversar sobre a evolução da doença, tanto com o paciente como com os familiares de uma maneira afetuosa, sempre com muito carinho” logo no estágio inicial. É neste momento que o idoso ainda tem plena consciência e capacidade de entender sua condição, quando ele pode entender a situação e planejar sua vida a partir dali.
Muitas vezes, como observado no caso de Anne no filme, os familiares tendem a considerar que dão conta de tudo, mas apenas se sobrecarregam. A neurologista chama a atenção para o suporte necessário também com quem cuida dos idosos. “Aqueles que cuidam de pessoas com demência têm muitos problemas de depressão, às vezes se sentem impotentes por não conseguirem ou sentirem que não fazem o suficiente”, afirma a médica. Assim, é preciso atenção dos dois lados para garantir uma boa qualidade de vida.
O processo de perda
Um dos tópicos mais difíceis para os familiares de pacientes com Alzheimer é o sentimento de perda gradual de uma pessoa que, fisicamente, continua presente. O processo de esquecimento é doloroso e causa muito sofrimento, “é como se fosse um luto porque aquela pessoa que você mais ama no mundo está se esquecendo de você” reconhece a neurologista.
“Uma coisa que devemos lembrar é que os pacientes continuam apresentando sentimentos. Então ele sabe que você é uma pessoa que ele gosta muito, ele continua sentindo um carinho muito importante e fica muito feliz com sua presença, mesmo que ele não tenha certeza de quem você é mais.”
A médica costuma dizer o seguinte para seus pacientes:
“Às vezes o paciente não se lembra de que você é o filho dele, mas você se lembra de que ele é seu pai. E esse amor, esse vínculo, não deixa de existir, o sentimento não deixa de existir.”
Essa passagem se não reconforta deve ao menos ser vista como um meio de tentar suavizar todo o peso que ronda a doença. Além disso, a questão do tempo pode ser amplamente discutida a partir da história de Anthony. A narrativa do filme vai e volta, tendo relação direta com o que acontece na cabeça do senhor, que se perde entre o passado e o presente. Seu apego pessoal por seu relógio de pulso seria talvez uma forma de tentar domar esse tempo que foge a seu controle?
“Sinto como se estivesse perdendo todas as minhas folhas. Os galhos, o vento e a chuva. Eu não sei mais o que está acontecendo. Você sabe o que está acontecendo? Toda essa história sobre o apartamento. Eu não tenho mais onde abaixar minha cabeça. Mas eu sei que meu relógio está no meu pulso, isso eu sei. Para a viagem.” Fala de Anthony no final do filme
Cada segundo da vida é importante, sobretudo na companhia daqueles que amamos. Para quem convive com um parente querido com Alzheimer, é vital que opte pelo tratamento o mais breve possível. O que resta além do cuidado é tentar aproveitar cada mísera ação e palavra oportunizada. No filme, em um momento de lucidez, Anthony agradece a filha por tudo o que faz por ele. A cena é tocante, principalmente depois de acompanhar os altos e baixos da doença do pai. É frente a histórias como essa que percebemos o verdadeiro valor de todas as memórias que acumulamos durante a vida.
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