"Garota Exemplar" e o arquétipo da "Garota Legal"
- Dara Russo
- 16 de mar. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 25 de mar. de 2021

O ano era 2012 e a escritora e jornalista estadunidense Gillian Flynn lançava seu best-seller “Garota Exemplar”. O livro criticamente aclamado, que posteriormente foi adaptado para as telonas por David Fincher (estrelando Rosamund Pike e Ben Affleck), nomeia de forma certeira um estereótipo, ou melhor, um arquétipo (um modelo ideal que se utiliza como exemplo) muito comum na mídia: a “Garota Legal”.
Descrito pelo The New Yorker como “um thriller envolvente, o retrato magistral do desenrolar de um casamento”, “Garota Exemplar”, além de entreter, também aguça o senso crítico. A obra pode ser usada como base para questões antropológicas quanto à representação da mulher em produções culturais. O livro conta a história de Nick e Amy, um casal aparentemente perfeito até o seu quinto aniversário de casamento, quando Amy desaparece e seu marido é tido como o principal suspeito.
Em contraste com o tom sombrio de “Garota Exemplar”, a comédia romântica “Quem vai ficar com Mary?” foi uma das obras que levou Gillian Flynn a questionar o arquétipo da “Garota Legal”. Nele, a personagem titular, Mary Jensen, interpretada por Cameron Diaz, é uma típica “Garota Legal” que faz com que os dois protagonistas masculinos se apaixonem por ela quase instantaneamente. Mas o que há nesta personagem que fez com que Flynn questionasse as representações femininas na mídia?
A anatomia da “Garota Legal”
“Garota Legal. Os homens sempre dizem isso como o elogio definidor, não é? Ela é uma garota legal. Ser a Garota Legal significa que eu sou uma mulher gostosa, brilhante, divertida, que adora futebol, pôquer, piadas indecentes e arrotos, que joga vídeo game, bebe cerveja barata, adora ménage à trois e sexo anal e enfia cachorros-quentes e hambúrgueres na boca como se fosse anfitriã da maior orgia gastronômica do mundo, ao mesmo tempo em que de alguma forma mantém um manequim 36, porque Garotas Legais são acima de tudo gostosas. Gostosas e compreensivas. Garotas Legais nunca ficam com raiva. Apenas sorriem de uma forma desapontada e amorosa e deixam seus homens fazerem o que quiserem. Vá em frente, me sacaneie, não ligo, sou a Garota Legal. Os homens realmente acham que essa garota existe. Talvez se deixem enganar porque muitas mulheres estão dispostas a fingir ser essa garota”. (Garota Exemplar - p.244)
Em um monólogo atribuído à sua personagem principal, Amy Elliott-Dunne, Gillian Flynn descreve, ao longo de quatro páginas, esse arquétipo. Dessa forma, podemos perceber que a principal característica dessa persona é representar uma combinação perfeita de atributos masculinos positivos e os atributos femininos socialmente desejáveis . A garota considerada “legal” sempre é “um dos caras”, ou seja, tem uma paixão por carros, esportes, videogames ou outras coisas normalmente vistas como masculinas. Ela reflete todos os interesses do protagonista masculino.
Além disso, ela é sempre divertida e engraçada. Come comida que não é saudável e bebe cerveja, mas mesmo assim continua dentro de todos os padrões estéticos. Essa mulher também nunca fica com raiva e, o mais importante, ela “não é como as outras garotas”. Bem, você se lembra da Mary Jensen? Ela é uma médica muito bem sucedida, que joga golfe todas as manhãs e come hambúrgueres todos os dias. Tudo isso representado na figura esbelta de 1,74 de altura, cabelos loiros e olhos azuis da atriz Cameron Diaz.
Trata-se de um tipo feminino que parte claramente da visão masculina. Aqui, podemos trazer à tona a teoria feminista do Male Gaze, ou “Olhar Masculino”. Gaze é um conceito utilizado para análises da cultura visual quanto às apresentações e visões que as personagens da obra analisada passam para o público. A crítica cinematográfica britânica Laura Mulvey foi quem cunhou o termo Male Gaze no ensaio “Visual Pleasure and Narrative Cinema” (Prazer Visual e Cinema Narrativo) de 1975. Ela explica que, no cinema, as mulheres são tipicamente objetos, e não as donas do gaze, porque no controle da câmara (e portanto do gaze) geralmente está um homem branco heterossexual, e o mesmo pode ser dito do público alvo da maioria dos gêneros de filme.
Tal perspectiva explica a existência e persistência da “Garota Legal” em narrativas cinematográficas. Um estudo feito pelo Center for the Study of Women in Television and Film, na Universidade de San Diego, Califórnia, mostra que apenas 16% dos 100 filmes de Hollywood com maior bilheteria em 2020 foram dirigidos por mulheres. E essa é a maior porcentagem já registrada pelo estudo até hoje.
Como essa fantasia afeta as mulheres
Ao longo dos anos, esse tipo de personagem se tornou tão comum que logo a “Garota Legal” se tornou a garota padrão, tanto na mídia quanto fora das telas. A atriz Jennifer Lawrence é um exemplo de como a sociedade pode levar uma mulher a performar um ideal inalcançável. No início de sua carreira a jovem atriz acabava interpretando o papel da “Garota Legal” na vida real: sempre falando de fast food, cerveja e que não era como as outras atrizes. Para, mais tarde, abrandar essas características.
A jornalista, mestra em Comunicação Social, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais e pesquisadora do grupo de pesquisa Mídia e Narrativa da PUC Minas, Juliana Gusman explica que o patriarcado e a cultura do machismo atuam diretamente na criação de estereótipos de "mulheres ideais". “O estereótipo atua de certa forma como uma ferramenta ideológica”, afirma. Trata-se de uma estratégia representativa usada de forma naturalizada, de determinadas características, geralmente depreciativas de certos grupos sociais, geralmente aqueles subalternizados na sociedade.
A mídia então exerce tal função ideológica quando fixa, naturaliza e determina aquilo que pode ser considerado normal ou anormal na sociedade. Assim, muitas vezes as representações midiáticas sedimentam papéis de gênero desiguais e estruturas patriarcais que precisam de todo um sistema de valores de pensamento que justifiquem que as mulheres sejam um grupo explorado. A “Garota Legal” não representa uma mulher de verdade, ela é um mito criado por homens e perpetuado por mulheres que fingem ser assim, tal como foi descrito por Gillian Flynn em “Garota Exemplar”.
Amy, a personagem principal da obra de Flynn, por exemplo, tem um surto psicótico, porque tem fingido ser a “Garota Legal” e tentado atender às expectativas que a sociedade criou para ela durante toda sua vida. E, mesmo com todos os seus esforços, seu marido conhece outra “Garota Legal”, mais jovem, para colocar em seu lugar.
Padrões ao longo dos séculos
Há quem possa argumentar que a “Garota Legal” é uma fase pela qual todas as mulheres passam. Quem nunca, provavelmente na pré-adolescência, agia como se fosse diferente das outras meninas e rejeitava tudo que era considerado “de mulherzinha”? A cor rosa, moda, maquiagem e salto alto são exemplos de coisas que ainda são renegadas por muitas meninas, porque a sociedade patriarcal as ensina, desde muito novas, que tudo que é considerado masculino é melhor que o feminino.
É irônico pensar que, se hoje vemos esse padrão de “coisas de mulherzinha” sendo inferiorizado, devemos lembrar que, no passado, tais características eram pré-requisitos para ser aceita como uma “mulher de bons costumes''. Hoje, após a inserção da mulher no mercado de trabalho, muitas mulheres têm sido forçadas a acreditar que para serem levadas a sério e serem “originais”, precisam romper completamente com essas exigências.
A maior problemática está no fato de que os padrões estabelecidos para mulheres estão em constante mudança e provocam sempre a mesma coisa: a inferiorização de mulheres que não se enquadram. Isso faz com que as próprias mulheres inferiorizem umas às outras. Sempre é gerado um conflito que distrai a realidade feminina de suas lutas diárias.
A escritora Virginia Woolf vem trazendo à tona essa discussão desde o início do século XIX e dedica praticamente toda sua obra à reflexão sobre o papel social da mulher. Na obra “Um teto todo seu”, Woolf problematiza a questão da “presença” da mulher na literatura inglesa, e também da “verdadeira natureza da mulher”. Portanto, a constante existência e reforço desses padrões ao longo dos séculos reforçam a importância de obras populares que confrontam e criticam o discurso masculino como “Garota Exemplar”.
Outras "Garotas Legais" na mídia
Quer saber por que essas personagens também são "garotas legais"? Ouça o primeiro episódio do nosso podcast:
Comments